13/01/2018

Lutero: Ser sem lei não é o mesmo que não ter lei

Lei e Evangelho (1529-1530), xilogravura de Lucas Cranach, o Velho (1472–1553)

É comum aparecer totalmente fora de contexto uma frase de Lutero dizendo que devemos "pecar com ousadia" ou "pecar fortemente", fazendo o bem-aventurado doutor parecer antinomista. O trecho abaixo, de seu Prefácio à Epístola de S. Paulo aos Romanos, é esclarecedor quanto à posição do reformador e edificante para a nossa fé:

No capítulo 6, S. Paulo trata da obra particular da fé: a contenda do Espírito com a carne em matar por completo os demais pecados e desejos que res­tam após a justificação, e nos ensina que, através da fé, não estamos liberta­dos de pecados de forma tal que pudéssemos ficar ociosos, preguiçosos e seguros, como se não houvesse mais pecado. Há pecado, mas ele não é imputado para a condenação, por causa da fé que com ele luta. Por isso temos o bastante para lidar conosco mesmos a vida inteira, para domar o corpo, matar seus desejos e obrigar seus membros a obedecerem ao Espírito e não aos desejos. Para que sejamos iguais à morte e ressurreição de Cristo e possamos levar a cabo aquilo que foi começado em nosso Batismo (que também significa a morte dos pecados e a nova vida da graça), até que, totalmente purificados de pecados, ressurjamos também corporalmente com Cristo e vivamos eternamente.

E podemos isso fazer, diz ele, porque nos encontramos na graça e não na lei, o que ele mesmo interpreta no seguinte sentido: “Ser sem lei” não é o mesmo que não ter lei alguma e que se possa fazer o que apraz a cada um, e sim, “estar sob a lei” é quando, sem a graça, lidamos com as obras da lei. Então, com certeza, o pecado impera através da lei, uma vez que ninguém, por natureza, é afeito à lei, e isto é um grande pecado. A graça, porém, nos toma a lei agradável, de sorte que não há mais pecado e a lei não está contra nós, mas em harmonia conosco.

É esta a liberdade correta do pecado e da lei: até o final deste capítulo, ele expõe que se trata de uma liberdade de fazer apenas o bem com vontade e de viver corretamente sem a coação da lei. Por isso, tal liberdade é uma liberdade espiritual, que não anula a lei e sim, oferece aquilo que é exigido pela lei, a saber, vontade e amor, com o que a lei é aplacada e não mais fica a incitar e exigir. E como se estivesses em dívida para com um credor e não pudesses pagar. Há duas maneiras pelas quais poderias te livrar: urna, que ele nada te cobrasse e rasgasse tua nota promissória; a outra, que um homem bom pagasse por ti e te desse o suficiente para pagar a promissória. Dessa maneira, Cristo nos livrou da lei, razão por que não se trata de uma liberdade carnal selvagem, que nada precisa fazer, mas que faz muito e toda sorte de coisas e está livre apenas da exigência e dívida da lei.

No capítulo 7, ele confirma isso com um exemplo da vida matrimonial. Quando morre o marido, a mulher está desimpedida e um está separado e livre do outro. Não que a mulher não pudesse ou devesse tornar outro homem. Só que apenas agora está realmente livre para tomar outro, o que anteriormente ela não podia, enquanto não estava livre daquele. Assim, também, nossa consciência está vinculada à lei, sob o velho homem pecaminoso. Quando este é morto pelo Espírito, a consciência está livre e um desobrigado do outro. Não que a consciência nada devesse fazer; mas sim, para que agora possa ater-se tanto mais a Cristo, o outro homem, e produzir frutos para a vida.

Em seguida, ele expõe de forma mais ampla a peculiaridade do pecado e da lei, de como, pela lei, o pecado fica ainda mais ativo e violento. Pois o velho homem se toma tanto mais inimigo da lei por não poder pagar o que a lei exige, porque sua natureza é pecado, e ele de si mesmo não pode fazer outra coisa, motivo por que a lei é sua morte e seu total martírio. Não que a lei seja má, mas a natureza má é que não pode suportar o bem que dele exige coisas boas, assim como um doente não suporta que se exija que ele corra e salte ou pratique outros atos próprios de uma pessoa sadia.

Por isso S. Paulo conclui aqui: Onde a lei for adequadamente reconhecida e entendida da melhor maneira possível, ela não faz mais do que nos lembrar de nosso pecado e nos matar através do mesmo, tomando-nos culpados da ira eterna. Tudo isso se percebe e experimenta muito bem na consciência, quando esta é bem atingida pela lei. De sorte que é necessário algo diferente e superior à lei para tomar a pessoa justa e salva. Aqueles, porém, que não reconhecem adequadamente a lei, são cegos, comportam-se com arrogância, acreditando poder-lhe fazer jus com obras. Pois não sabem o quanto a lei exige: um coração livre, disposto e animado; por essa razão, não encaram Moisés de frente. Para eles, o véu está posto na frente, encobrindo-o [Ex 34.29-35; 2Co 3.12-16].

Em seguida, ele mostra como Espírito e carne lutam um contra o outro numa pessoa. Apresenta a si mesmo como exemplo para que aprendamos a reconhecer bem a obra (matar o pecado em nós mesmos). Mas a ambos ele chama de lei, tanto o Espírito como a carne, e isso pela seguinte razão: assim como a lei divina tem a característica de impedir e exigir, assim também a carne impele, exige e se agita com violência contra o Espírito e quer satisfazer seu desejo. Por outro lado, o Espírito investe contra a carne e procura satisfazer sua vontade. Esta luta perdura dentro de nós enquanto vivemos, num mais, noutro menos, dependendo do que é mais forte, o Espírito ou a carne. E mesmo assim, a pessoa inteira é ela mesma ambas as coisas, Espírito e carne, lutando, portanto, consigo mesma, até que fique inteiramente espiritual.

No capítulo 8, ele consola esses lutadores para que não condenem essa carne. Indica qual a natureza da carne e do Espírito e como o Espírito provém de Cristo, que nos deu seu Santo Espírito, que nos faz espirituais, amortece a carne e nos assegura de que ainda assim somos filhos de Deus, por mais violento que o pecado se agite dentro de nós, contanto que sigamos o Espírito e resistamos ao pecado, para o matar. Como, porém, nada é tão bom, para insensibilizar a carne, como cruz e sofrimento, ele nos consola nos sofrimentos através do auxílio do Espírito, do amor de todas as criaturas. Tanto o Espírito suspira em nós como a criatura conosco anseia para que nos livremos da carne e dos pecados. Vemos, portanto, que esses três capítulos, 6, 7 e 8, têm por alvo esta única obra da fé: matar o velho Adão e subjugar a carne.
- Bem-aventurado Martinho Lutero, Prefácio à Epístola de S. Paulo aos Romanos (OSel 8:137-139)

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