13/11/2019

Bo Giertz: O fundamento da fé cristã


Durante suas sinceras tentativas de se tornar completamente livre do pecado, a pessoa faz a humilhante descoberta de que é realmente muito pior do que sempre imaginou.

Isto acontece bastante com os pecados exteriores palpáveis. Aqueles dos quais eu posso, pelo menos até certo ponto, me libertar. Mas por trás deles descubro outra coisa da qual sou incapaz de me livrar, e é a isso que nossos antepassados chamavam de depravação e corrupção pecaminosa inerente, que está firmemente enraizada na minha própria natureza.

Quero ser limpo, absolutamente puro, mas descubro que há um espírito imundo em meu ser mais íntimo, que me zomba e me tortura, o qual sou incapaz de afastá-lo. Nos momentos mais solenes da minha vida, mesmo na própria igreja, ele pode trazer os mais repulsivos trapos imundos de seu estoque vil e lançá-los entre os meus pensamentos. Ele frustra todos os esforços possíveis quando eu quero afugentá-lo. Ele faz parte do meu próprio ser. Essa é a terrível verdade.

Ou talvez meu pecado assolador seja outro. Quero me tornar completamente verdadeiro e honesto - e vejo em meu ser um poder horrível, o qual me torna completamente desonesto e falso. Em todo caso, isso apenas me leva a ser um pouco melhor do que eu sou. Eu até faço minha confissão de pecados mais profunda e "mais cristã" ou mais cuidadosa e mais branda do que deveria ter sido.

Ou então eu quero ser totalmente altruísta e amoroso. Afinal de contas, não sou eu quem viverá mais, mas Cristo viverá em mim. Mas descubro que estou completamente mergulhado em egoísmo e orgulho. Se fiz algo de bom em segredo, continuo discreto e espero que isto, de alguma forma, se torne conhecido e falado. Talvez um dia recebo notícias de que algum parente está morrendo e, em meio à tristeza, penso em verificar quanto eu posso herdar. O orgulho me segue até o aposento de oração. Eu aprecio minha própria oração. Talvez eu me admire pelo meu fervor ou pelas minhas palavras apropriadas, humildes e bonitas diante de Nosso Senhor!

A tudo isso também pode ser agregado uma nova inércia na oração e um novo ataque de tentações, que eu pensava que haviam sido superados há muito tempo. A alegria inicial foi totalmente perdida. Sinto-me tão esgotado, relutante e mundano como nunca. Se eu for honesto comigo mesmo, devo admitir que muitas vezes preferiria ler o jornal do que a Bíblia e passar uma hora em conversa fiada com uma pessoa qualquer do que quinze minutos em oração a Deus.

Nesta situação, a pessoa começa a entender toda a terrível verdade de Romanos 7: “Não entendo o que faço. Pois não faço o que desejo, mas o que odeio... Sei que nada de bom habita em mim, isto é, em minha carne. Porque tenho o desejo de fazer o que é bom, mas não consigo realizá-lo... Pois, no íntimo do meu ser tenho prazer na lei de Deus; mas vejo outra lei atuando nos membros do meu corpo, guerreando contra a lei da minha mente, tornando-me prisioneiro da lei do pecado que atua em meus membros. Miserável homem eu que sou! Quem me libertará do corpo sujeito a esta morte?"

Agora há uma grave crise na vida de fé da pessoa. Agora será necessário um verdadeiro auto-domínio para ler a Bíblia. Afinal de contas, parece que a pessoa só encontra novas provas de que não é digna de ser cristã. Sente quase vergonha de orar a Deus. Tantas vezes pediu perdão e força para vencer que dificilmente imagina ser capaz de pedir novamente. Ao mesmo tempo, o tentador semeia ressentimentos ocultos contra Deus, porque Ele não ajuda a pessoa a vencer, muito embora queira viver no caminho reto e estreito. Na alma brota o princípio de uma desconfiança de Deus, uma dúvida murmuradora de que Ele realmente exista e deseja intervir na vida da pessoa.

É precisamente neste ponto que muitas pessoas desistem. Geralmente, primeiro a pessoa se afasta da Mesa do Senhor - se alguma vez já foi um comungante fiel - e depois vem o descuido e negligência em relação à leitura da Bíblia e à vida de oração. Então, quando estiver assim enfraquecida, o inimigo da alma arma uma armadilha e, antes mesmo de perceber como isso aconteceu, a pessoa se envolve em pecados manifestos, como por exemplo, na esfera sexual. Dessa forma, a pessoa cai em densas trevas e abandona o cristianismo em total desconfiança ou com amargura desafiadora...

Outras pessoas, apesar de tudo, não são capazes de se libertar de Deus. Elas sabem que estão totalmente sem esperança, mas, ao mesmo tempo, sabem que Cristo está totalmente correto em suas exigências. De alguma forma, elas conseguem se dar bem com sua consciência ferida. Elas sentem que é desonesto usar o nome de cristão, mas, mesmo assim, não podem renunciá-lo. Estas pessoas querem ser cristãs, mas não podem. Essa é a tortura da alma.

Para todas essas pessoas, isto agora deve ser dito de forma clara e sincera: Lembre-se de que até mesmo isso é obra de Deus. O que você está passando agora, todo cristãos verdadeiramente convertido antes que você teve que passar. Nossos antepassados chamaram isso de despertar [tomar ciência], e eles sabiam exatamente que momento difícil isto é. É difícil - e mesmo assim você tem motivos para se alegrar, e aqui um  Cura d'almas (Seelsorger) pode dizer com alegria e ênfase: Deus te abençoe! Isso que aconteceu com você prova que Deus tem estado e está trabalhando em você. Ele está levando seu trabalho adiante e avante. Que a alegria, a edificação e o poder que você sentiu no início já tenha sucumbido e dado lugar à experiência humilhante da sua própria fraqueza, isso não é um retrocesso no seu cristianismo, mas é um grande passo à frente. É justamente porque você ouviu o chamado e realmente se conectou a Deus que lhe foi permitido experimentar isso. Agora você aprendeu o que de outra forma nunca teria aprendido, a saber, o que é ser escravizado pelo pecado. Possivelmente, agora você comece a perceber que este é realmente o tipo de situação na qual nós precisamos ser salvos, porque não podemos salvar a nós mesmos. Como tal, você de fato chegou aos portões do reino dos céus. Agora resta a você passar por eles. Quando Deus já o humilhou e permitiu que você visse o quão pouco você é capaz de si mesmo, isto é para que você finalmente comece a descobrir o que Deus fez por nós, que, no final das contas, é muito mais importante do que tudo o que poderíamos fazer por Deus. Continue orando e fazendo uso da Palavra, mas não leia apenas os últimos capítulos de Paulo e não ouça apenas as exigências do sermão, mas mergulhe com toda a seriedade na mensagem sobre a expiação, porque, em última análise, para nós tudo depende dessa mensagem. Determine passar por todo o Novo Testamento, a fim de ver e meditar sobre o que significa que Deus deu a seu Filho para expiação do pecado, pecado pelo qual não podemos pagar ou mesmo erradicar... Por fim, está claro também para você que o fundamento para a nossa fé cristã, para a aliança que o Deus vivo fez conosco no batismo, não é realmente a nossa justiça, o nosso arrependimento ou o nosso cumprimento de seus santos requisitos, mas é a incrível misericórdia de Deus, sua graça imerecida e a obra expiatória de nosso Senhor Jesus Cristo no Gólgota.

Bispo Bo Giertz (Life by Drowning: Enlightenment through Law and Gospel. Cambridge: The Evangelical Lutheran Church of England, 2013. pág. 14-16)

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