23/02/2019

O martírio de Policarpo no Livro dos Mártires de Foxe

John Foxe (Granger)
John Foxe (1517 - 1587), escritor e martirologista inglês, traz um relato vívido do martírio de Policarpo em seu volumoso martirológio, publicado na língua inglesa em 1563, “Actes and Monuments of These Latter and Perillous Dayes” (Atos e Monumentos desses Dias Tardios e Perigosos), que ficou conhecido popularmente como Livro dos Mártires de Foxe. Dois anos após a morte de Foxe apareceu a primeira edição abreviada por Timothie Bright. São estas edições abreviadas que chegam às mãos do leitor, visto que as edições originais de Foxe podem chegar a 2.000 páginas.

O Livro dos Mártires (Mundo Cristão, 2003)
O Livro dos Mártires de Foxe narra a história da perseguição e perseverança dos principais mártires cristãos de seu tempo e de épocas anteriores até alcançar a igreja primitiva. Abaixo, a narrativa do martírio de Policarpo extraída do Livro dos Mártires, publicado pela editora Mundo Cristão, em tradução de Almiro Pisetta (o mesmo tradutor de “O Senhor Dos Anéis” e “O Hobbit”, juntamente com Lenita Maria Rímoli Esteves).

Almiro Pisetta, que é especialista em língua inglesa, fez sua tradução a partir da edição inglesa organizada e preparada por W. Grinton Berry (1873-1926), que simplificou e reorganizou o Livro dos Mártires original, a fim de apresentar a história de Foxe com mais clareza para o leitor. A justificativa que o editor W. Grinton Berry faz em seu prefácio é de que a "discursividade" de Foxe desencoraja o leitor contemporâneo "que gosta de narrativas que são rápidas e cheias de movimento, indo direto ao ponto", mas deixa claro "que nada de essencial foi omitido" em sua edição.

Existe ainda uma outra edição do Livro dos Mártires publicado em 2001 pela CPAD, com tradução de Marta Doreto e Degmar Ribas Júnior. Esta tradução é baseada na edição inglesa organizada por William Byron Forbush (1868–1927). Nesta edição o relato do martírio de Policarpo é muito mais sucinto que a edição da Mundo Cristão apresentada abaixo.

O MARTÍRIO DE POLICARPO
Policarpo sendo queimado na estaca. Xilogravura de uma edição americana (1832) do Livro dos Mártires de Foxe
Depois da morte do discreto e brando príncipe Antonino Pio, veio seu filho Marco Aurélio, por volta do ano 161 de nosso Senhor, homem de natureza mais dura e severa. Embora fosse digno de louvor tanto pelo estudo da filosofia quanto pelo governo civil, contudo foi rígido e feroz com os cristãos. Por ele foi desencadeada a quarta perseguição.

Durante o reinado de Marco Aurélio um grande número dos que professavam a fé em Cristo sofreu crudelíssimos tormentos e castigos. Entre eles estava Policarpo, o digno bispo de Esmirna. Sobre o seu fim e martírio julguei que seria útil legar para a história aquilo que Eusébio declara ter sido extraído de um a certa carta escrita pelos membros da sua própria igreja (de Policarpo) para todos os irmãos espalhados pelo mundo.

Três dias antes de ser preso, enquanto estava orando à noite, ele adormeceu e viu num sonho o seu travesseiro incendiar-se e logo consumir-se no fogo. Acordando em seguida, imediatamente relatou a visão aos circunstantes e profetizou que ele seria queimado vivo por amor de Cristo. Quando as pessoas que andavam à sua procura fecharam-lhe o cerco, ele foi induzido, por amor dos irmãos, a retirar-se para outra aldeia. Para lá, porém, logo fora m os perseguidores em seu encalço. E tendo apanhado dois rapazes que moravam na vizinhança, açoitara m um deles até que este os conduziu ao retiro de Policarpo. Os perseguidores, tendo chegado tarde da noite, descobriram que ele já fora para a cama no alto da casa. Dali, se quisesse, ele poderia ter fugido para o interior de outra casa. Mas recusou-se, dizendo: “Seja feita a vontade do Senhor”.

Ao saber que os perseguidores haviam chegado, desceu e dirigiu-lhes a palavra com semblante alegre e agradável, de modo que eles, que nunca o haviam visto, ficara m maravilhados contemplando a sua venerável idade e gravidade e perguntavam-se por que deveria m se preocupar tanto com a captura de um homem tão velho. Ele imediatamente ordenou que um a mesa fosse posta, exortou-os a comer com apetite e pediu que lhe concedessem um a hora para orar sem ser molestado. Tão repleto estava ele da graça de Deus que os circunstantes ficaram assombrados ao ouvir-lhe as orações e muitos lamentara m que um homem tão venerável e piedoso devesse ser levado à morte.

Depois de terminar as orações, nas quais fez menção de todas as pessoas com quem entrara em contato na vida, pequenas e grandes, nobres e comuns, e de toda a Igreja católica disseminada pelo mundo, chegada a hora de partir, eles o puseram sobre um jumento e o trouxeram para a cidade. Lá Policarpo encontrou-se com o irenarca Herodes e seu pai Nicetes, que, fazendo-o subir para a sua carruagem, puseram-se a exortá-lo dizendo: — Que mal há em dizer “Senhor César” e em oferecer sacrifícios e assim salvar a própria vida? — De início ele ficou em silêncio. Porém, ao ser forçado a falar, disse: — Não agirei de acordo com os seus conselhos. — Quando percebera m que ele não se deixava convencer, dirigiram-lhe palavras grosseiras e logo o empurrara m para fora da carruagem de modo que ao descer ele machucou a canela. Todavia, imperturbável como se nada estives- se sofrendo, foi em frente exultante, escoltado pelos guardas, até o estádio. Lá, em meio a um ruído tão forte que poucos conseguiam ouvir algum a coisa, uma voz veio do céu dizendo: — Sê forte, Policarpo, e comporta-te como um homem. — Ninguém viu quem falou, mas muitos ouviram a voz. Quando ele foi trazido ao tribunal, houve um grande tumulto no instante em que a multidão percebeu que Policarpo estava preso. O procônsul perguntou-lhe se ele era Policarpo. Ao ou- vir a confirmação, ele o aconselhou a negar a Cristo, dizendo-lhe: — Olhe para si mesmo e tenha pena de sua idade avançada. — E acrescentou muitas outras frases que eles costumam dizer, tais como “Jure pela fortuna de César”, “Arrependa-se” e “Diga: ‘Abaixo os ateus’”.

Então Policarpo, com aspecto grave, contemplando toda a multidão no estádio e acenando-lhe com a mão, emitiu um profundo suspiro e, erguendo os olhos para o céu, disse: — Removam-se os ateus.

Então o procônsul insistiu com ele dizendo: — Jure, e eu o porei em liberdade; renegue a Cristo.

Respondeu Policarpo: — Há oitenta e seis anos eu O sirvo, e Ele nunca me faltou. Como então blasfemarei meu Rei, que me salvou?

O procônsul novamente insistiu: — Jure pela fortuna de César.

Respondeu Policarpo: — Um a vez que sempre em vão o senhor se esforça para me fazer jurar pela fortuna de César, como o senhor diz, fingindo ignorar o meu verdadeiro cará ter, ouça-me declarar com franqueza o que sou. Eu sou um cristão, e se deseja aprender a doutrina cristã, marque um dia, e então poderá me ouvir.

Ouvindo isso, disse o procônsul: — Tenho feras selvagens. Se não se arrepender, eu o entregarei a elas.

— Mande trazê-las — replicou Policarpo — pois para nós o arrependimento é um a atitude ruim quando significa mudar do melhor para o pior, mas é um a atitude boa quando significa um a mudança do mal para o bem.

— Se não se arrepender, domarei você com fogo — disse o procônsul — um a vez que despreza as feras selvagens.

Então disse Policarpo: — O senhor me ameaça com um fogo que queima durante um a hora e logo se apaga. Mas o fogo do julgamento futuro e do castigo eterno reservado para os ímpios, esse o senhor ignora. Mas por que está se delongando? Faça tudo o que lhe agradar.

O procônsul mandou o arauto proclamar três vezes no meio do estádio: “Policarpo confessou que é cristão.” Mal essas palavras foram proferidas, toda a multidão, tanto gentios quanto judeus que moravam em Esmirna, com fúria violenta se pôs a gritar: — Este é o doutor da Ásia, o pai dos cristãos e o destruidor dos nossos deuses, que ensinou muitos a não oferecer sacrifícios e a não adorar. — A esta altura pediam ao asiarca Filipe para que soltasse um leão contra Policarpo. Mas ele recusou-se, alegando que havia encerrado o seu espetáculo. Então puseram-se a gritar em uníssono que ele deveria ser queimado vivo. Pois sua visão precisava se cumprir — a visão que ele tivera quando estava orando e viu o seu travesseiro incendiar-se. O povo imediatamente apanhou lenha e outros materiais secos nas oficinas e nos banhos. Nesse serviço os judeus (com sua costumeira maldade) sentiram-se particularmente dispostos a ajudar.

Quando quiseram amarrá-lo na fogueira, disse Policarpo: — Deixem-me como estou. Não é preciso prender-me com pregos, pois aquele que me dá forças para suportar o fogo também me fará permanecer na fogueira sem eu querer fugir. — Assim ele foi amarrado mas não pregado. Disse ele então: — Ó Pai, eu te bendigo por me teres considera do digno de receber o meu prêmio entre os mártires.

Assim que ele proferiu a palavra “Amém”, os oficiais acenderam o fogo. A chama, for mando um a espécie de arco semelhante à vela enfunada de um barco, envolveu feito um muro o corpo do mártir que estava no meio do fogo não como carne queimando mas sim como ouro e prata sendo purificados na fornalha. Recebemos em nossas narinas um aroma semelhante ao que se evola do incenso ou de alguns outros perfumes preciosos. Finalmente, o povo maldoso, ao perceber que o seu corpo não poderia ser consumido pelo fogo, mandou que o carrasco se aproximasse e nele enterrasse a espada. Imediatamente, um a quantidade tão grande de sangue jorrou que o fogo se extinguiu. Mas o invejoso, maligno e despeitado inimigo do justo procurou um jeito de nos impedir de recolher o pobre corpo. De fato, algum as pessoas sugeriram a Nicetes para procurar o procônsul e pedir-lhe que não entregasse o corpo aos cristãos: — Para evitar — disseram eles — que, abandonando o crucificado, eles passem a adorar a ele. — Isso disseram depois de ouvir as sugestões e argumentos dos judeus, que também nos vigiaram quando queríamos retirar o corpo da fogueira. O centurião, percebendo a malevolência dos judeus, fez colocar o corpo no meio do fogo e queimá-lo. Recolhemos em seguida os seus ossos — mais preciosos que ouro e joias — e os depositamos num lugar adequado.

Durante a mesma perseguição padecera m os gloriosos e mui constantes mártires de Lyon e Vienne, duas cidades da França, dando um retumbante testemunho e, para todos os cristãos, um espetáculo ou exemplo singular de fortaleza em Cristo nosso Salvador.

Fonte: FOXE, John. O livro dos mártires. São Paulo: Mundo Cristão, 2003. p. 27-31.

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