29/11/2018

Batismo: dilúvio de graça


Na capela do Seminário Teológico Concórdia de Fort Wayne (EUA) existem dois ícones na entrada da igreja, próximo à pia batismal. Um ícone retrata Noé, a quem Deus salvou do Dilúvio, e o outro ilustra o Batismo de Jesus por João Batista. É muito significativo que esses dois eventos sejam retratados e recordados ali onde a graça salvadora do sacramento do Santo Batismo é administrada aos filhos de Deus.

Esta correspondência das águas salvadoras do Dilúvio com as águas salvadoras do Santo Batismo nos é permitida pelo apóstolo São Pedro, que escreveu em sua Primeira Epístola: "Deus aguardava com paciência nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca, na qual poucas pessoas, apenas oito, foram salvas através da água. O batismo, que corresponde a isso, agora também salva vocês" (1 Pe 3.20-21).

Lutero também faz essa mesma conexão da salvação concedida ao crente Noé e sua família no Dilúvio com a salvação eterna concedida aos crentes no Santo Batismo. O bem-aventurado reformador diz ao comentar o episódio do Dilúvio (Gn 6-9) em suas Preleções acerca de Gênesis (OS 12,251-347), que essa conexão entre Dilúvio e Batismo "é verdadeiramente uma alegoria teológica, isto é, está em conformidade com a fé e é repleta de consolo". Lutero diz que no "batismo do dilúvio, Noé e seus filhos são salvos, mas o resto do mundo, que permaneceu fora da arca, pereceu... O dilúvio é verdadeiramente morte e ira de Deus, mas os fiéis são salvos do meio do Dilúvio... Essa esperança não é em vão, pois ele têm Cristo, que receberá seus espíritos e, no último dia, também despertará para a vida eterna os corpos dos que creem". Por isso, os que creem não deve temer a morte, pois "a morte não o destruirá, mas será um impulso e uma ajuda para a vida". Para o crente o Batismo é "um dilúvio de graça".

No seu Manual do Batismo (Taufbüchlein), revisado em 1526, Lutero também expõe sua teologia do Batismo na chamada Oração do Dilúvio (Sintflutgebet), que reza assim:
"Onipotente eterno Deus, que de acordo com teu reto juízo condenaste o mundo incrédulo pelo dilúvio e, por tua grande misericórdia, conservaste o crente Noé e mais sete pessoas de sua família; que afogaste o endurecido Faraó com todos os seus, no mar Vermelho; que conduziste o teu povo Israel através do mesmo em terra seca, prefigurando, com isso, este banho do teu santo Batismo; e que, pelo Batismo de teu querido Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, consagraste e instituíste o Jordão e todas as águas como um dilúvio bem-aventurado e uma rica lavagem dos pecados: pedimos por essa mesma [lavagem] tua profunda misericórdia, que queiras olhar graciosamente para este N. e abençoá-lo com fé verdadeira no Espírito; para que, por meio deste dilúvio salvador, tudo o que lhe é inato desde Adão e que ele mesmo a isto acrescentou seja afogado nele e desapareça; que seja separado dentre o número dos descrentes, conservado seco e seguro na santa arca da cristandade, sirva sempre a teu nome, ardendo em Espírito e alegre em esperança; para que, junto com todos os crentes, ele se torne digno de alcançar vida eterna, de acordo com a tua promessa; por Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém." (OSel 7, 218-219).

Ilustração: Jonathan Mayer

Esta Grande Oração do Dilúvio foi traduzida para o inglês por Thomas Cranmer nos Livros de Oração do Rei Eduardo VI (1549 e 1552) e também é utilizada na tradição anglicana. Ainda hoje faz parte do rito batismal de muitas Igrejas Luteranas, mesmo que de uma forma adaptada. Em 2006 a Oração do Dilúvio foi incluída no novo Livro de Culto da da Igreja Luterana - Sínodo Missouri (Lutheran Service Book: Altar Book. St Louis: Concordia Publishing House, 2006. pág. 268-269). Esta é a versão que está no Livro de Batismo da IECLB (São Leopoldo: Oikos, 2008. p. 74):

"Bendito sejas, Senhor, Deus do universo, Criador de céu e terra, pela dádiva da água, com a qual vens sustentando a tua criação. Já na origem do universo, teu Espírito pairava sobre as águas para que viessem a gerar vida. Nas águas do Dilúvio, um mundo corrompido foi por ti, então, destruído. Nas águas do mar Vermelho, afogaste um opressor, conduzindo pelas mesmas teu povo, a pé enxuto, livre da escravidão. Nas águas do Jordão, pelo batismo de teu Filho, o Verbo encarnado, consagraste todas as águas para nossa salvação. Envia agora o teu Espírito e, através do banho regenerador desta água, concede nova vida a N. e N., para que, morrendo e ressuscitando em Cristo, te sirvam no povo da nova e eterna aliança. Por ele, teu Filho, Jesus Cristo, no Espírito Santo, sejam dadas a ti, Pai todo-poderoso, toda honra e toda glória, agora e para sempre. Amém."
Ilustração: Janet Wittenback

Na Oração do Dilúvio Lutero traz os mesmos ensinamentos acerca do sacramento do Santo Batismo expostos no seu Catecismo Menor (Cm) e Catecismo Maior (CM). Assim como o mundo incrédulo do tempo de Noé foram afogados no Dilúvio e o Faraó e os seus foram afogados no Mar Vermelho, também "o velho homem em nós... deve ser afogado e morrer com todos os pecados e maus desejos" (Cm IV,12). Lutero lembra que esse afogamento acontece "por contrição e arrependimento diários", ou seja, sempre que confessamos os nossos pecados. Confessar os pecados é voltar às águas do Santo Batismo. Lutero ensina que "o arrependimento outra coisa não é que um retorno ao batismo e aproximação dele, repetindo-se e praticando-se o que anteriormente se começou, havendo-o, porém abandonado" (CM IV,79)

Assim como Noé e sua família e o povo de Israel que saiu do Egito foram salvos das águas, assim também "a força, a obra, o proveito, o fruto e o fim do batismo é salvar" (CM,IV,24). E ser salvo é ser "liberto do pecado, da morte, do diabo, chegar ao reino de Cristo e com ele viver eternamente" (CM IV,25). O Batismo é "uma medicina que traga a morte e mantém a todos os homens em vida" (CM IV, 44).

Assim como a salvação da família de Noé e do Povo de Israel foram obras de Deus, assim também "o batismo não é obra nossa, mas de Deus" (CM IV,35). É "um tesouro que Deus nos dá e do qual se apossa a fé" (CM IV, 37). Lutero roga a Deus que o crente batizado "seja separado dentre o número dos descrentes, conservado seco e seguro na santa arca da cristandade", sirva a Deus, "ardendo em Espírito e alegre em esperança", ou seja, "que viva em justiça e pureza diante de Deus eternamente" (Cm IV,12), "de modo que com o passar do tempo nos tornemos cada vez mais brandos, pacientes e mansos, e liquidemos mais e mais a avareza, o ódio, a inveja, a soberba" CM IV, 67). Esta é a vida para a qual fomos chamados através do batismo.

Voltando aos ícones de Noé e do Batismo de Cristo e à pia batismal da Capela do Seminário em Fort Wayne, que estão logo na entrada da nave da igreja, podemos aprender mais alguma coisa. A posição da pia batismal na entrada é uma poderosa testemunha de que o Sacramento do Santo Batismo é a entrada para a vida cristã, o novo nascimento (Rm 6.4), lembrando simbolicamente que entramos na vida da igreja, na vida do corpo de Cristo, quando nascemos de novo do alto através das águas batismais.

Algumas igrejas luteranas mantêm água na pia batismal e incentivam os membros a molharem os dedos na água e fazer o sinal da cruz como uma lembrança perpétua do batismo que "nos arranca das fraudes do diabo, nos torna propriedades de Deus, subjuga e tira o pecado, e depois fortalece diariamente o novo homem, e sempre opera e permanece, até que desta miséria passemos à glória eterna" (CM IV,83).

Lutero também tinha sua maneira de lembrar do seu batismo que também serve de conselho a nós. Quando em dúvida ou desespero, consolava-se, dizendo a si mesmo: “baptizatus sum” (sou batizado). Alguns dizem que ele escreveu isso na sua mesa. Na verdade, o dito completo de Lutero era: "Ecce, ego baptizatus sum, et credo in Christum crucifixum". Algumas pessoas são lembradas do seu batismo quando olham para o quadrinho da certidão de batismo na parede de casa, de modo que se recordam também de seu aniversário de nascimento espiritual. Certa vez um estimado professor disse que a água com a qual lavamos o rosto pela manhã é propícia para lembrar do batismo, quando também podemos confessar os pecados, e então iniciar um novo dia renovados com a absolvição de Cristo. Podemos ainda fazer a Oração do Dilúvio de Lutero como uma ação de graças pelo nosso batismo.

Assim como em seu Catecismo Menor Lutero passa do Sacramento do Santo Batismo ao Ofício das Chaves e então ao Sacramento do Altar, também fazemos esse percurso todos os domingos. Iniciamos o culto lembrando que fomos batizados "em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo", afogamos nossos pecados na Confissão de Pecados, recebemos o consolo da Santa Absolvição, no Sacramento do Altar nos é concedido fortalecimento da fé em Deus e ardente caridade para com o próximo para sermos enviados para o culto diário através do nosso amor e serviço a Deus e ao próximo.

Com vistas à vivência diária da fé cristã, no final do Catecismo Maior Lutero nos convida a considerar "cada qual o batismo como sua vestimenta cotidiana, em que sempre se deve andar, para que todo o tempo se encontre na fé e em seus frutos, a fim de subjugar o velho homem e crescer o novo. Pois, se queremos ser cristãos, cumpre que exercitemos a obra pela qual nos tornamos cristãos" (CM IV,84-85). O Santo Batismo é fundamental para viver aqui e na eternidade!

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