07/10/2019

Lutero: Fé é obra divina


A fé não é a ilusão e o sonho humano que muitos acham que é. E quando veem que não acontece uma melhoria de vida nem boas obras e, ainda assim, muito ouvem e falam da fé, caem no erro de dizer que a fé não é suficiente, que é preciso fazer obras, se é que se quer ficar justo e ser salvo. A consequência disso é que, ao ouvirem o Evangelho, agem precipitadamente e, por esforço próprio, criam um pensamento no coração que diz: “Eu creio”. Isso eles então consideram uma fé verdadeira. Mas, assim como isso não passa de fantasia e pensamento humano que jamais atinge o fundo do coração, também nada ocasiona, tampouco se segue uma melhoria.

Fé, entretanto, é uma obra divina em nós que nos modifica e nos faz renascer de Deus (João 1.13), mata o velho Adão, transforma-nos em pessoas bem diferentes de coração, sentimento, mentalidade e todas as forças, e traz consigo o Espírito Santo. Ah, há algo muito vivo, atuante, efetivo e poderoso na fé, a ponto de não ser possível que ela cesse de praticar o bem. Ela também não pergunta se há boas obras a fazer, e sim, antes que surja a pergunta, ela já as realizou e sempre está a realizar. Quem, porém, não realiza tais obras, é pessoa sem fé que anda às apalpadelas à procura de fé e boas obras e nem sabe o que é fé nem boas obras e, ainda, fica falando muito e conversando fiado sobre as mesmas.

Fé é uma confiança viva, inabalável na graça de Deus, tão certa de si que ela não se importaria de morrer mil vezes. E semelhante confiança e reconhecimento da graça divina tornam alegre, persistente e agradável perante Deus e todas as criaturas, o que é ocasionado pelo Espírito da fé. Por isso, sem coação, ela se dispõe voluntariamente a fazer o bem a todo mundo, a servir a todo mundo, sofrer tudo, por amor e em louvor a Deus que lhe demonstrou tamanha graça, de sorte que é tão impossível separar as obras da fé, como é impossível separar a luz do fogo. Toma cautela, portanto, contra as tuas próprias ideias falsas e contra conversadores inúteis, que querem ser sabidos ao julgar sobre a fé e as boas obras e, na verdade, são os maiores ignorantes. Peço a Deus que crie fé em ti, senão hás de ficar eternamente sem fé. Tu, por ti mesmo, inventas e fazes o que queres ou podes.

Justiça, então, é essa fé, e significa justiça de Deus, ou que vale perante Deus, uma vez que é Deus quem a dá e a considera justiça, por causa de Cristo, nosso mediador, e concede à pessoa disposição para dar a cada um o que lhe deve. Pois, através da fé, a pessoa se torna sem pecado e ganha vontade de cumprir os mandamentos de Deus, com o que ele dá glória a Deus e paga o que lhe deve. E às outras pessoas ela serve de bom grado como pode; e com isso também paga a cada um. Uma justiça desta espécie nem a natureza, nem a livre vontade e nossas forças conseguem produzir. Pois da mesma forma como ninguém consegue dar a fé a si mesmo, também não se pode eliminar a falta de fé. Como alguém haveria de tirar o menor pecado que fosse? Por essa razão, tudo é falso, hipócrita e pecado o que acontece fora da fé ou com falta de fé (Romanos 14.23), por maior brilho que possa apresentar.

- Bem-aventurado Martinho Lutero (1483-1546), doutor e reformador da igreja (Prefácio à Epístola de São Paulo aos Romanos)

Fonte: Obras Selecionadas de Lutero, vol. 8. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia Editora, 2003. p. 132-133

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