16/12/2013

Cantares, a palavra que ilumina

Letra capitular em Cântico de Salomão (c. 1100), na Catedral de Winchester
Donaldo Schüler

Entre canções pastoris hebreias, ouve-se a ternura de uma voz feminina. O livro das canções (Cantares ou Cântico dos Cânticos) incorporado na Bíblia, é do quinto século a.C. Com a tradução grega, dois séculos depois, os hemistíquios de Israel soam nas línguas do Ocidente. Na ausência do amado, a pastora fala sozinha, lembra palavras, anseios, buscas, planos, andanças. Aliás, duas vozes vibram na fala da guardadora de rebanhos, uma delas é a voz da obreira: a família obrigou-a a trabalhar, o trabalho tisnou-lhe a pele; a outra voz é a da rainha, também conhecida como Sulamita. Enfim, quem é a pastora? Obreira? Rainha? Não importa, o amor apaga diferenças, nivela escrava e soberana. Mais do que cumprir com obrigações de seu ofício, importa à pastora estar com o amado. Movida pelo amor, a jovem busca o companheiro, o rei.

A enamorada, não admitindo que a exposição aos raios solares lhe roube a beleza, dirige-se a amigas de Jerusalém, alvas por viverem em recintos fechados. Cor e elevação social não diminuem o interesse das endereçadas. Elas orientam a jovem aflita. As pastagens batem no abrigo de tribos nômades. Localidades como Cedar e Salma teriam desaparecido não fossem as dores do peito inquieto. O sol integra a jovem na paisagem, ela vê semelhanças entre sua tez e as tendas negras.

Os sentimentos traduzidos em palavras agitam-lhe o corpo. Tocar lábios masculinos com o calor dos seus é seu desejo. Dos lábios do Criador procede a palavra que ilumina o universo, lábios saúdam as piscadelas do céu estrelado, lábios anunciam a redenção, lábios abrem-se ao amado e ao mundo.

A hora sonhada evoca outras delícias: o sabor do vinho, o odor dos perfumes, a carícia de unguentos. O nome (shem) do amado, misturado ao óleo (shemen), unta a pele da cantora. O amor desinibe, liberta, encanta. A pastora move-se untada com o nome do amado, nome-untada.

A plenitude compartilhada chama ao isolamento. Paredes erguidas para proteger cabeças coroadas abrigam corações pulsantes. O conúbio afeta a natureza. Mirra, vinhas, relva, cedros, ciprestes, narcisos, açucenas, espinheiros, macieiras, cervas, gazelas amparam a ternura. O universo reconcilia-se no abraço ardente.

Com a voz do amado, a visão se transfigura. Vista e agraciada, nunca saberemos como ela é de verdade. Quem é essa jovem que concentra em si a escrava e a rainha, a virgem e a aventureira, a donzela pacata e a guerreira – a mulher misteriosa que desequilibrou o mais sábio dos homens? Atarefada com rebanhos e vinhas, seu rosto, iluminado por colares e brincos, brilha.

Donaldo Schüler é escritor, professor e tradutor brasileiro

Publicado em 27 de novembro de 2013, no blog da Comunidade Luterana Cristo de Porto Alegre/RS

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