23/10/2018

Testemunho de Tiago, irmão do Senhor


Eusébio de Cesareia (cerca de 263-339 d.C.) se notabilizou por nos legar um dos registros históricos mais importantes do cristianismo primitivo. Na sua principal obra, denominada História Eclesiástica, o bispo de Cesareia reconstitui a história da Igreja desde o ministério terreno do Nosso Senhor Jesus Cristo até o Concílio de Niceia em 325 d.C. Ali temos um farto relato sobre a vida de Judas, irmão de Jesus. Confira os trechos destacados da edição publicada no Brasil pela Editora Paulus:



LIVRO SEGUNDO

CAPÍTULO 1

A atitude dos apóstolos após a ascensão

1. Em primeiro lugar, por sorte foi designado Matias, que havia sido, conforme se mostrou, um dos discípulos do Senhor para o apostolado, em vez de Judas, o traidor. Além disso, foram estabelecidos, através da oração e imposição das mãos dos Apóstolos, alguns diáconos para o serviço da comunidade, homens probos, em número de sete, que se agruparam em torno de Estêvão (At 6,1-6). Ele foi o primeiro após o Senhor que foi morto logo que recebera a imposição das mãos, como se houvesse sido assinalado justamente para isso. Foi apedrejado por aqueles que mataram o Senhor e assim foi o primeiro a alcançar a coroa, cujo nome trazia, das vitoriosas testemunhas de Cristo (At 7,58-59).

2. Então, Tiago, chamado irmão do Senhor (Gl 1,19), — tinha também ele o nome de filho de José; [31] José era pai de Cristo, pois a Virgem era comprometida em casamento com ele, mas antes que coabitassem, ela concebeu do Espírito Santo (Mt 1,18), conforme ensinam as Sagradas Escrituras, no Evangelho — esse Tiago, a quem os antigos davam o sobrenome de justo, devido a suas excelentes virtudes, diz-se ter sido o primeiro a ser instalado no trono episcopal da cidade de Jerusalém.

3. Clemente, no sexto livro das Hipotyposes, o declara. Afirma, de fato: “Após a ascensão do Salvador, Pedro, Tiago e João, apesar de particularmente distinguidos pelo Salvador, não disputaram a honra de bispo de Jerusalém, mas escolheram Tiago, o justo, para este múnus”.

4. O mesmo autor, no sétimo livro da mesma obra, narra ainda a seu respeito: “A Tiago, o justo, a João e a Pedro o Senhor concedeu a gnose, após a sua ressurreição. Eles a transmitiram aos demais apóstolos e os restantes apóstolos, por sua vez, a transmitiram aos setenta, um dos quais era Barnabé.

5. Havia dois apóstolos com o nome de Tiago: um, o justo, que tendo sido precipitado do pináculo do templo, foi batido com o bastão de um pisoeiro até morrer, e o outro que foi decapitado”. É também o justo que é mencionado por Paulo, ao escrever: “Não vi nenhum outro apóstolo, mas somente Tiago, o irmão do Senhor” (Gl 1,19).

[31] Clemente e Orígenes têm Tiago como filho de José. Devem esta opinião, certamente, aos apócrifos, o Evangelho de Pedro e o proto-evangelho de Tiago.

CAPÍTULO 23

Testemunho de Tiago, irmão do Senhor

1. Paulo apelou a César e foi enviado por Festo para a cidade de Roma (At 25,11-12; 27,1). Os judeus, vendo frustrada a esperança de êxito de sua conjuração (At 23,13-15; 25,3), voltaram-se contra Tiago, o irmão do Senhor, a quem os apóstolos haviam confiado a sede episcopal de Jerusalém. Ousaram tramar o seguinte contra ele:

2. Fizeram-no comparecer no meio deles e procuravam fazer com que renegasse a fé em Cristo diante de todo o povo. Contra suas expectativas, Tiago diante de toda a multidão falou abertamente, com liberdade, e confessou que nosso Salvador e Senhor Jesus era o Filho de Deus. Foram incapazes de suportar o testemunho de tal homem, visto gozar da reputação de ser muito justo, através da superioridade baseada numa vida sábia e piedosa. Mataram-no, aproveitando a oportunidade da falta de um governante, porque Festo falecera na Judeia e a anarquia e desordem se haviam instalado na província.

3. As circunstâncias da morte de Tiago já foram assinaladas, numa citação de Clemente, que diz ter sido ele precipitado do pináculo do templo e morto com bastonadas. Hegesipo, da primeira geração depois dos apóstolos, registra cuidadosamente tudo o que toca a Tiago no quinto livro das suas Memórias, nos seguintes termos:

4. “O irmão do Senhor, Tiago, com os apóstolos governou a Igreja. Desde o tempo do Senhor até nós, todos lhe davam o apelativo de Justo, visto serem muitos do mesmo nome.

5. Ele foi santificado desde o seio materno; não bebia vinho, nem bebida inebriante; nada ingeria do reino animal (Lv 10,9; Nm 6,3; cf. Lc 1,15; Jz 14,4; 1Sm 1,11); a tesoura não passara por sua cabeça; não se ungia com óleo, não se banhava (Nm 6,5).

6. Somente ele tinha acesso ao santuário. Não usava vestes de lã e sim de linho (Ex 29,39; 28,27). Entrava sozinho no templo e mantinha-se de joelhos, suplicando perdão para o povo, de tal modo que seus joelhos se calejaram, assemelhando-se ao couro dos camelos, porque se prostrava sempre de joelhos, adorando a Deus e pedindo perdão pelo povo.

7. Devido a sua eminente justiça era apelidado: o Justo e Oblias (em vernáculo: fortaleza do povo e justiça) segundo o designavam os profetas (cf. Is 3,10).

8. Alguns sequazes das sete seitas existentes no meio do povo, supramencionadas (nas Memórias), perguntaram-lhe qual era a porta de Jesus e ele respondeu-lhes que ele era o Salvador (cf. Jo 10,7.9).

9. Alguns deles acreditaram que Jesus é o Cristo. As seitas acima não creram na ressurreição, nem em sua vinda para retribuir a cada um de acordo com as próprias obras (cf. Rm 2,6; Sl 61,13; Pr 24,12; Mt 26,27). No entanto, quantos acreditaram, creram por intermédio de Tiago.

10. Mas tendo muitos crido, mesmo dos chefes, houve um tumulto entre os judeus, os escribas e os fariseus, que comentavam: ‘O povo corre o risco de confiar em Jesus Cristo’ (cf. Jo 12,19). Foram juntos procurar Tiago e disseram-lhe: ‘Viemos pedir-te que retenhas o povo, porque ele se ilude a respeito de Jesus, como se fosse o Cristo. Rogamos-te, portanto, que esclareças a todos os que vêm para a festa da Páscoa sobre Jesus, pois todos têm confiança em ti. De fato, atestam com o povo que és justo e não fazes acepção de pessoas (Lc 20,21).

11. Por conseguinte, persuade o povo, a fim de que não se iluda acerca de Jesus. Pois, o povo e todos nós confiamos em ti. Coloca-te, portanto, no pináculo do Templo, a fim de que lá em cima todos te possam ver e tuas palavras sejam ouvidas por todo o povo. Com efeito, por causa da Páscoa reuniram-se todas as tribos e até alguns gentios.’

12. Os supramencionados escribas e fariseus colocaram a Tiago no pináculo do Tempo e gritaram- lhe: ‘Ó Justo, em quem devemos todos confiar, tendo em conta que o povo se ilude na sequela de Jesus, o crucificado, anuncia-nos qual é a porta de Jesus.’ Respondeu-lhes em alta voz: ‘Por que me interrogas sobre o Filho do homem? (cf. At 7,56) Ele está sentado no céu à direita do Supremo poder e virá sobre as nuvens do céu’ (cf. Mt 26,64; Mc 14,62).

13. Muitos, inteiramente convictos, exaltavam o testemunho de Tiago, com as seguintes palavras: ‘Hosana ao Filho de Davi’ (Mt 21,9). Então, por sua vez, os escribas e fariseus diziam uns aos outros: ‘Fizemos mal ao provocarmos tal testemunho em favor de Jesus. Subamos, pois, e joguemo-lo para baixo, a fim de que os outros se intimidem e não creiam nele’.

14. E exclamaram: ‘Oh! Oh! Até o justo enganou-se’. E realizaram a profecia de Isaías: ‘Eliminemos o justo, porque nos incomoda. Colherá o fruto do seu procedimento’ (Sb 2,12; Is 3,10). Então subiram e jogaram o Justo para baixo.

15. E diziam uns aos outros: ‘Apedrejemos a Tiago, o Justo’. E começaram a apedrejá-lo, porque Tiago não morrera ao ser jogado para baixo. Mas este voltou-se, pôs-se de joelhos e disse: ‘Suplico- te, Senhor, Deus Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem’ (Lc 23,34; At 7,59-60).

16. Enquanto assim o apedrejavam, um dos sacerdotes, dos filhos de Recab, filho de Recabim, acerca dos quais dá testemunho o profeta Jeremias, gritava: ‘Parai! O que fazeis? O Justo reza por vós’ (Jr 35,2ss).

17. Então, um deles, um pisoeiro, tomou o bastão com o qual batia os tecidos, golpeou a cabeça do Justo, que assim completou o martírio. Foi sepultado no mesmo lugar, junto ao Templo, e até hoje seu túmulo se vê perto do Templo. Foi verdadeira testemunha diante de judeus e gentios de que Jesus é o Cristo. E, logo, Vespasiano os sitiou.”

18. Tudo isso consta da longa descrição de Hegesipo, em consonância com a de Clemente. Tiago era, de fato, admirável e tão afamado entre todos os outros por sua justiça que até os judeus prudentes acreditaram ter sido o seu martírio causa do imediato cerco de Jerusalém, o qual, em sua opinião, não tivera outro motivo a não ser o sacrilégio perpetrado contra ele. [40]

19. Josefo não hesitou em testemunhar esses fatos por escrito, referindo textualmente: “Estas coisas, porém, sucederam aos judeus em castigo do crime contra Tiago, o Justo, irmão de Jesus, apelidado o Cristo, pois os judeus o mataram, apesar de ser um homem muito justo”.

20. Anota igualmente esta morte no vigésimo livro das Antiguidades, com as seguintes palavras: “César, tendo notícia da morte de Festo, enviou Albino à Judeia, como procurador. Ora, Ananos, o Jovem, de cuja elevação ao sumo pontificado já falamos, era de maneiras arrogantes e em extremo ousadas. Além disso, pertencia ao partido dos saduceus, que, conforme mostramos, são os mais cruéis de todos os judeus nos julgamentos.

21. Com tais disposições de ânimo, Ananos julgou ser a morte de Festo boa oportunidade para realizar seu plano. Enquanto Albino estava ainda de viagem, convocou o sinédrio e fez com que comparecesse perante ele o irmão de Jesus, denominado o Cristo — Tiago era seu nome — e outros mais. Acusou- os de transgressores da Lei, condenando-os à lapidação.

22. Os que eram, sem dúvida, os mais prudentes da cidade, e mais observantes da Lei, não aceitaram passivamente tal sentença e enviaram em sigilo mensageiros ao rei, suplicando que proibisse a Ananos agir desta forma, pois até então não procedera corretamente. Alguns dentre eles foram mesmo ao encontro de Albino, que chegava a Alexandria, sugerindo-lhe não ser lícito a Ananos convocar o sinédrio sem o consentimento de sua parte.

23. Albino, persuadido por essas palavras, escreveu irado a Ananos, ameaçando puni-lo. Quanto ao rei Agripa, retirou-lhe por isso o sumo pontificado que ele exercera por três meses e substituiu-o por Jesus, filho de Dameu.” São estas as notícias sobre Tiago, ao qual se atribui a primeira das chamadas cartas Católicas.

24. Convém notar que ela não é autêntica. Efetivamente, não são muitos dos antigos que a citam, bem como a chamada carta de Judas, também ela uma das sete ditas Católicas. Temos, porém, conhecimento de que essas cartas são lidas publicamente entre as demais, em grande número de Igrejas.

[40] Cf. J. CHAINE, A Epístola de são Tiago, Paris, 1927, p. XXXIX: “A narração da morte de são Tiago é inverossímil. Como os escribas, os fariseus poderiam acreditar que Tiago falaria em público contra seu mestre? Ele não entrava no santuário, no Santo dos santos, mas rezava sobre o pavimento como todos os outros israelitas. Encontrava-se em presença de um procedimento da hagiografia popular. O velho Simeão é também elevado à dignidade de sumo sacerdote no Evangelho de Nicodemos. Os desenvolvimentos lendários sobre o pontificado e a morte de Tiago tornam mais ou menos suspeita toda a narrativa. De acordo com os Atos, não parece que Tiago tenha vivido de maneira tão original e que tenha sido nazareno”.


LIVRO TERCEIRO

CAPÍTULO 7

Predições de Cristo

8. Justo seria, contudo, salientar traços que demonstram o amor e total bondade da Providência relativamente aos homens. Esperou quarenta anos inteiros, após o audacioso crime contra Cristo para eliminar os réus. Nesse prazo de tempo, a maioria dos apóstolos e discípulos e o próprio Tiago, o primeiro bispo da cidade, denominado irmão do Senhor, ainda viviam e moravam na própria cidade de Jerusalém, fortaleza poderosamente munida.

LIVRO QUARTO

CAPÍTULO 5

Bispos de Jerusalém desde o Senhor à época de que tratamos

1. Relativamente aos bispos de Jerusalém, não encontrei em parte alguma por escrito suas respectivas datas. É certo, pela tradição, que tiveram vida muito curta.

2. Certifiquei-me, contudo, por documentos escritos, que, até o assédio dos judeus sob Adriano, sucederam-se em Jerusalém quinze bispos. Diz-se que eram todos hebreus por origem e terem acolhido genuinamente o conhecimento de Cristo. Em consequência, aqueles que ali podiam decidir, julgaram-nos dignos do múnus episcopal. Com efeito, a Igreja toda de Jerusalém se compunha então de hebreus fiéis. Assim sucedeu desde o tempo dos apóstolos até o cerco que sofreram então, quando os judeus se contrapuseram aos romanos e foram aniquilados em fortes guerras.

3. Uma vez que terminaram nessa ocasião os bispos oriundos da circuncisão, convém levantar agora sua lista, desde o primeiro. Com efeito, o primeiro foi Tiago, denominado irmão do Senhor; depois dele, o segundo foi Simeão; o terceiro, Justo; o quarto, Zaqueu; o quinto, Tobias; o sexto, Benjamim; o sétimo, João; o oitavo, Matias; o nono, Filipe; o décimo, Sêneca; o undécimo, Justo; o duodécimo, Levi; o décimo terceiro, Efrém; o décimo quarto, José; finalmente, o décimo quinto, Judas.

4. Estes foram os bispos da cidade de Jerusalém, desde os apóstolos até o tempo a que nos referimos. Todos dentre os circuncisos.

5. Ao atingir o império de Adriano já o duodécimo ano, Xisto, tendo completado o décimo ano de episcopado em Roma, teve Telésforo por sucessor, o sétimo depois dos apóstolos. Decorridos um ano e alguns meses, Eumenes teve a presidência na Igreja de Alexandria, em sexto lugar. Seu predecessor permaneceu durante onze anos.


FONTE:

EUSÉBIO DE CESAREIA. História eclesiástica [tradução Monjas Beneditinas do Mosteiro de Maria Mãe de Cristo]. São Paulo: Paulus, 2000. [Patrística, 15]

Nenhum comentário:

Postar um comentário