19/08/2014

Por que e em que modo Deus há de ser amado?


Vós quereis ouvir de mim por que e em que modo Deus há de ser amado? E eu vos respondo: a causa pela qual Deus há de ser amado é o próprio Deus; o modo é amar sem modo. É suficiente isso? Talvez seja, mas para os sábios. Mas eu estou em dívida em relação aos ignorantes (cf. Rm 1,14): embora, para os sábios, o que foi dito seja suficiente, para os outros deve ser explicado. Portanto, não será gravoso repetir o mesmo de forma mais extensa, porém não mais profunda, em prol daqueles que demoram mais para entender. Deus há de ser amado por Ele mesmo em base a uma dúplice razão: porque nada de mais justo e nada de mais vantajoso pode ser amado. Indagar a respeito de Deus, investigando o porquê há de ser amado, gera uma dúplice forma de pensamento. De fato, pode-se duvidar se Deus há de ser amado por mérito dele ou para nossa vantagem. Na realidade, eu responderia o mesmo em ambos os casos, quer dizer, não há por mim outra razão digna de amar a Deus a não ser Ele mesmo. Primeiramente vejamos o mérito da questão- Ele mereceu muito por nós, pois entregou-se por nós que não merecíamos. O que Ele podia dar de melhor do que si mesmo? Portanto, se se procurar a causa pela qual Deus há de ser amado, se busca o mérito de Deus, e aquele é o fundamental: que Ele por primeiro nos amou. Por isso, Ele é digno de ter seu amor de volta, especialmente quando observa-se quem amou, quem foi amado e quanto tenha amado. Quem, portanto, amou? Não é aquele a quem todo espírito confessa: Tu és o meu Deus, por que não precisas dos meus bens? (SI 15,2). É verdadeira, portanto, a caridade dessa majestade, porque não procura seu próprio interesse. Mas a quem se oferece tamanha pureza? Quando ainda, disse, éramos inimigos, fomos reconciliados com Deus (Rm 8,32). Deus, portanto, amou os inimigos e, ainda por cima, gratuitamente. Mas quanto? Quanto o afirma João: Deus amou tanto o mundo, que entregou seu Filho único (Jo 3,16) e também Paulo, que diz: Quem não poupou o seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós (Rm 8,32). Também o próprio Filho disse a seu respeito: Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos (Jo 15,13). Esse é o mérito que o justo recebeu junto aos ímpios, o mérito que Aquele que está acima de todas as coisas recebeu junto aos que são da mais baixa condição, o mérito que o Todo-poderoso recebeu junto aos fracos. Contudo, alguém diz: assim, com certeza, fez para os homens, mas não para os anjos. Isso é verdadeiro, porque não foi necessário. De resto, quem veio em ajuda dos homens, nesta necessidade, dela preservou os anjos: e quem, amando os homens, operou de tal modo que não permanecessem como eram, é o mesmo que, amando igualmente os anjos, concedeu-lhes que não se tornassem como nós.

-- São Bernardo de Claraval, (De diligendo Deo: "Deus há de ser amado"; tradução de Matteo Raschíetti. Petrópolis: Vozes, 2013)

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