22/11/2012

Ação de Graças


Hoje é a quarta quinta-feira do mês de novembro, ocasião em que celebramos o Dia Nacional de Ação de Graças. Aqui temos um sermão do Rev. Paulo Weirich apropriado para este dia:


AÇÃO DE GRAÇAS
Rute 2.19

Bendito aquele que te acolheu favoravelmente

Noemi, ao perder marido e filhos em terra estrangeira, está reduzida à pobreza extrema. Ela vive da bondade das pessoas para tudo. Levítico 19.9,10 registra uma provisão que Deus havia feito para a sobrevivência dos pobres. Aí diz: “Quando também segares a messe da tua terra, o canto do teu campo não segarás totalmente, nem as espigas caídas colherás da tua messe. Não rebuscarás a tua vinha, nem colherás os bagos caídos da tua vinha. Deixá-los-ás ao pobre e ao estrangeiro. Eu sou o Senhor, vosso Deus”. Noemi está pobre. Rute, a nora que decidiu acompanhá-la no seu retorno à pátria e à sua família, é estrangeira. É tempo da colheita da cevada. Rute se oferece para repassar os campos em colheita para trazer alguma coisa na volta. Talvez lhe custa depender em tudo da bondade alheia.

É importante conhecermos a vida de Noemi. Por que ela decidiu voltar? Não fazia ideia daquilo que a aguardava no seu retorno? Ou a opção de ficar na terra dos moabitas lhe parecia pessoalmente ainda mais traumática? Verdade é que, ao sair com o marido Elimeleque de Belém para a terra de Moabe (Rt 1.1), Noemi já estava fugindo da fome e da miséria. Agora está de volta. Não há mais o flagelo da fome em Belém. Mas Noemi está à margem, na miséria, em sua própria terra. Ela diz: “Não me chameis de Noemi; chamai-me Mara (amarga), porque grande amargura me tem dado o Todo-Poderoso. Ditosa eu parti, porém o Senhor me fez voltar pobre” (1. 20,21).

Noemi não fala de sorte, azar, problemas, dificuldades. A sua linguagem e visão dos fatos é outra. “Grande amargura me tem dado o Todo-Poderoso [...] Ele me fez retornar pobre” Claramente Noemi pensa como Jó, numa fé simples e singela: “Temos recebido o bem de Deus e não receberíamos também o mal?” (Jó 1.10). Ou aquela que Jesus indica aos seus seguidores: “Olhai os lírios do campo, olhai as aves do céu ...” (Mt 6) Ou quando diz: “Se não vos tornardes como crianças” (Mt 18.3). Noemi se coloca diante da vida como quem sabe apenas que nada se move nos céus ou na terra sem o consentimento e a ação de Deus.

Talvez para Noemi estivesse claro algo que as pessoas de todas as épocas sempre tiveram dificuldade de admitir para viver de acordo. Penso na noção que Lutero e os Reformadores de Wittenberg tão bem recapturaram e que permite “deixar Deus ser Deus”. Isto é, fazer valer o que Isaías e o apóstolo Paulo, por exemplo, expressaram ao dizer: “Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, este eu faço” (Rm 7.19). Ou: “Mas todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças, como trapo de imundícia” (Is. 64.6).

Debaixo da lei e sob a nossa condição humana, nada de bom podemos esperar, pedir ou reivindicar de Deus. “Nada merecemos, senão castigo” ensinamos aos confirmandos, conforme palavra de Lutero. Contrário a isso, o ser humano expressa em tudo que diz e faz a convicção de que nasceu com o direito a uma vida longa, plena de coisas boas. Planeja e pensa como se a vida estivesse em dívida com ele. Para o ser humano a regra acima de todas as regras é o seu direito ao bem-estar. Em momento nenhum passa-lhe pela cabeça a ideia de que os seus planos e aspirações são menos consistentes do que uma fumaça que se dissipa logo.

O que acrescenta ainda outro ato falho do ser humano. Quando pensa em Deus, pensa em alguém que cedo ou tarde deverá ajudá-lo a obter o que ele, ser humano, julga como seu de direito. Ele pode até pedir e agradecer a Deus. Mas pede e agradece como alguém cujas vontades e desejos devam ser satisfeitos. Razão porque, uma vez que seus sonhos não se realizam e experimenta frustrações, queixa-se da vida, das pessoas, do governo, da realidade econômica. E em nenhum momento se pergunta: o que Deus está dizendo a mim nestas frustrações e necessidades que me atingem?

Noemi não deixou de lamentar o seu estado de miséria. Para marcar a sua tristeza, pedia que a não mais chamassem de Noemi (minha doçura), mas de Mara (amarga). Ao mesmo tempo, sabe que sua vida, agora como antes, está nas mãos de Deus: “O Senhor me fez voltar pobre” (1.21). E por isso a vida continua. Noemi não espera por uma reviravolta. A sua vida agora é uma vida de pobre. Mas Deus, que a fez voltar pobre, é o seu Deus.

Ao pensarmos que Rute, a estrangeira, é da linhagem de Jesus, podemos ver nisto um sinal do reino do Messias, nascido em pobreza e em busca dos perdidos. Ao mesmo tempo, sublinha a palavra de Jesus: “Os pobres sempre os tendes convosco”. É assim que Deus se revela e quer ser conhecido: O Deus daqueles que o mundo não conhece. O que Jesus também coloca nos lábios de Abraão quando diz ao rico, que estava no inferno: “Filho, lembra-te que recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro, igualmente, os males” (Lc 16.25).

Submeter-se à vontade de Deus significou algo especial para Noemi e Rute, como mais tarde à mãe do salvador: “Uma espada traspassará a tua alma” (Lc 2.35). Esta experiência da fé não está reservada a todos da mesma maneira. Mas o sofrimento na alma é uma experiência por que todos passam em sua vida.

Rute, predecessora do Messias (Mt 1.5), está entre os pobres, colhendo espigas. O autor deste relato não menciona em que estado de espírito Rute se dispõe a viver como pobre entre os pobres. Como também não existe da parte de Deus um “jeito” de compensar no futuro os que sofrem hoje. Fato é que a nossa realidade humana a nada mais pode aspirar por natureza do que sofrimento e morte. O natural para a natureza humana é sofrer as consequências do seu estranhamento com Deus.

Entretanto, Deus quer que aprendamos a reconhecer-nos na imagem que a lei apresenta de nós. Admitindo que a nada temos direito, nos perguntamos: E então? De onde vem o bem?

Rev. Paulo P. Weirich
São Leopoldo/RS


Publicado na Revista Igreja Luterana, Vol. 65, Nov. 2006, n.º 2, pp. 177-179.


"Rute declara sua lealdade para com Naomi" (1614) de Pieter Lastman (c. 1583-1633)

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