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Vitral na Westminster Presbyterian Church (Buffalo, NY, EUA) |
Hoje é dia de Johan Sebastian Bach no calendário luterano. A relação de sua obra com a teologia luterana é a abordagem do texto (abaixo) do Prof. Richard Planting (Calvin University), que faz parte do ensaio mais abrangente "
The Integration of Music and Theology in the Vocal Compositions of J. S. Bach", publicado na obra sobre música e teologia intitulada "
Resonant Witness: Conversations Between Music and Theology" (Eerdmans, 2011).
Bach e o LuteranismoO luteranismo ortodoxo de Bach o mergulhou numa tradição centrada nas Escrituras. Afinal, foi o estudo de Lutero sobre as Escrituras que lhe permitiu ver Deus não apenas como o assombroso e terrível juiz, mas também como o Deus gracioso que justifica os pecadores pela fé em Cristo. É somente através de Cristo que o Deus exigente e justo pode ser conhecido como amoroso e perdoador. Para Lutero, portanto, a morte expiatória de Cristo na cruz é fundamental, na medida em que a cruz é o evento no qual Cristo graciosamente justificou uma humanidade pecadora que não poderia justificar a si mesma. Lutero considerou assim a obra de Cristo na cruz, tanto como satisfação da justiça divina quanto como resgate do pecador acorrentado - e o ponto central dessa obra é a ressurreição no Domingo de Páscoa.
Tendo em vista o grande respeito que o luteranismo tem pelas Escrituras, não surpreende que Bach tenha sido um meticuloso leitor da Bíblia. Como leitor pré-moderno da Bíblia, Bach não leu o texto de forma histórico-crítica (ou seja, diacronicamente), como muitos leitores modernos estão dispostos a fazer. Ao invés disso, Bach era propenso a ler o texto literalmente (ou seja, sincronicamente) como narrativa realista. Uma abordagem narrativa enfatiza a tipologia; isto é, enxerga aspectos no texto como sendo figuras ou representações simbólicas que apontam para Cristo. Conforme Hans Frei argumenta, essa abordagem do texto das Escrituras foi apoiada por Lutero e Calov, dos quais Bach tomou as mais importantes estratégias e chaves hermenêuticas como leitor da Bíblia. No Novo Testamento, em particular, um leitor da Bíblia luterano ortodoxo pré-moderno reconhecia a importância do paradigmático segundo Adão - ou seja, Cristo - o representante da humanidade que morreu e justificou toda a humanidade.
As doutrinas básicas do luteranismo formaram o alicerce do mundo teológico em que Bach nasceu, cresceu e trabalhou. Mas não foi apenas a teologia que fez do luteranismo um ambiente hospitaleiro para o gênio de Bach. Entre os reformadores protestantes do século XVI, Lutero se destaca por sua devoção à música, que ele considerava uma boa dádiva de Deus. Veja, por exemplo, os comentários a seguir, extraídos de diversas obras de Lutero: “
a música é a maior dádiva de Deus que muitas vezes me induziu e inspirou a pregar”; “
ao lado da Palavra de Deus, a música merece o mais alto louvor”; “
fora a teologia, não existe arte que possa ser colocada no mesmo nível da música”. Com suas profundas ideias teológicas e sua alta estima pela música, Lutero empreendeu na década de 1520 uma reforma da liturgia católica romana para a emergente comunidade que ele liderava. Ao fazer isso, Lutero deixou claro que os fiéis deveriam cantar hinos, alguns dos quais ele próprio adaptou ou escreveu. Um dos principais fatores no desenvolvimento geral da música sacra protestante na Alemanha antes de Bach é a teologia de Lutero. Em especial, a visão de Lutero sobre as Escrituras foi fundamental, como observa Alfred Durr: “
A convicção de que a Palavra de Deus, conforme enunciada na Bíblia, é morta e ineficaz, a menos que seja proclamada, que tudo depende de torná-la corrente, resultou cada vez mais numa nova orientação para a música da igreja”.
Embora não exista uma linha direta de Lutero a Bach, e ainda que a tradição que carrega o nome de Lutero não tenha desenvolvido uma teologia da música sem controvérsias, há continuidades inconfundíveis entre a Wittenberg de Lutero do século XVI e a Leipzig de Bach do século XVIII. Para completar os aspectos teológicos e musicais do luteranismo examinados acima, tem a questão do calendário litúrgico luterano, uma espécie de aparato teológico do qual Bach tirou proveito. Após chegar a Leipzig em maio de 1723, o novo cantor da Thomasschule planejou ciclos (
Jahrgänge) de cantatas organizadas em torno do calendário litúrgico, começando quatro domingos antes do Advento e terminando por volta do Vigésimo Sétimo Domingo após Trindade. Bem instruído no texto bíblico e na teologia cristã, incluindo o
leitmotif luterano da teologia da cruz, o cristocêntrico Bach concentrou na Sexta-feira Santa o seu foco no calendário litúrgico luterano. As Paixões magistrais que ele compôs para este dia do Ano Eclesiástico refletem a percepção de Bach para este dia como epicentro do cristianismo.
Fonte: PLANTINGA, Richard J.
The Integration of Music and Theology in the Vocal Compositions of J. S. Bach. BEGBIE, Jeremy S.; GUTHRIE, Steven R. (Editores). In: Resonant Witness: Conversations Between Music and Theology. William B. Eerdmans Publishing, 2011. pp. 221-223.
Tradução:
Josemar Alves Bonho