Por John Murphy Ball
O Dia de São Patrício tem pouco significado litúrgico. Fora da Irlanda, nem sequer é um feriado nacional - não conheço ninguém que tire o dia de folga. No entanto, se já houve um homem que mereceu um dia em sua homenagem, é Patrício. Ele foi um herói cristão de incrível coragem, um homem que mudou a história e um homem de fé que merece ser lembrado - e não apenas pelos irlandeses!
Tal como acontece com muitos heróis do passado, história e lenda se misturaram quando se trata de Patrício. A partir de seus poucos escritos, sabemos que ele nasceu perto do final do século IV na Grã-Bretanha, então um posto avançado de um Império Romano que estava desmoronando.
Era um momento terrível no mundo ocidental. Muitos cristãos acreditavam que o fim do mundo estava próximo. O imperium estava se desintegrando e, junto com ele, o consolidado e organizado estilo de vida romano.
Décadas de guerra defensiva contra milhares de inimigos ao longo do vasto perímetro do império consumiram soldados e recursos num ritmo impossível de manter. Conflitos internos e corrupção haviam desestabilizado ainda mais o grande império. Roma estava encolhendo lentamente, levando suas tropas para posições mais defensivas e deixando províncias e colônias remotas perigosamente isoladas. A Grã-Bretanha era um posto avançado tão órfão, sem proteção real de invasores sanguinários que vinham do mar para roubar, estuprar, saquear e sequestrar crianças para a escravidão.
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São Patrício (Svitozar Nenyuk) |
Invasores irlandeses
Esses invasores eram os irlandeses - membros da mesma feroz raça celta que, em décadas passadas, confrontaram as tropas romanas e as repeliram para os limites da Grã-Bretanha romana. Naquela época, os irlandeses lutavam nus com os corpos pintados em cores vivas. Para os civilizados romanos, eles eram bárbaros amedrontadores com espadas modernas, escudos e outras armas.
Os irlandeses faziam joias e talheres dos ossos de suas vítimas e adoravam deuses terríveis, sanguinários e monstruosos. Eles praticavam sacrifício humano e foram acusados de canibalismo pelos romanos, que nunca conseguiram conquistar os irlandeses ou seus vizinhos, os pictos. Em vez de conquista-los, o exército romano procurou evitá-los e construiu muralhas fortificadas em toda a Grã-Bretanha, num esforço para mantê-los afastados.
Patrício foi uma das desafortunadas crianças roubadas por esses guerreiros piratas durante uma invasão. Ele era um menino romano cristão que, junto com suas duas irmãs, foi arrastado numa noite escura e levado através do mar para as remotas montanhas da Irlanda. Ali foi vendido para ser um escravo pastor. Foi forçado a viver em condições horríveis, muitas vezes com fome, muitas vezes com frio, ameaçado pelas intempéries e maltratado por seus sequestradores. Patrício sobreviveu e, ao longo dos anos, aprendeu o idioma dos irlandeses e seus costumes.
Em sua Confissão, um dos dois documentos que foram atribuídos a São Patrício, ele nos diz que não era muito religioso antes de ser capturado. Mas, tremendo sozinho em sua caverna na montanha, somente na companhia das ovelhas de seu patrão, ele se converteu sinceramente ao Senhor.
Durante seus seis anos de escravidão, Patrício orou e meditou. Um dia, ele nos conta, Deus lhe enviou uma visão inesperada durante um sonho. Ele deveria ir a um determinado porto, onde um barco estaria esperando para levá-lo para casa na Grã-Bretanha. Ele creu na mensagem, caminhou até o porto e os eventos aconteceram como haviam sido informados. Patrício, agora um jovem homem, estava livre e em casa novamente com seus pais!
Ele passou pouco tempo com sua família, pois recebeu outra mensagem, em outro sonho. Patrício nos conta que esse sonho foi vívido e assustador. Ele deveria retornar à Irlanda, a terra da qual acabara de escapar, não como escravo, mas como ministro de Deus. Patrício creu que o Senhor o havia escolhido para converter os irlandeses do paganismo druídico para Cristo.
Patrício começou a trabalhar obedientemente naquilo que seria uma tarefa ao longo da vida. Ele estudou alguns anos, tornou-se sacerdote e pediu para ser enviado à Irlanda. Suas petições foram repetidamente negadas até que ele recebeu outro trabalho. Uma década se passou e depois outra. Patrício foi nomeado bispo, mas não foi autorizado a ir para a Irlanda. A maioria dos homens teria desistido, mas Patrício trabalhou, orou e pediu. Mais alguns anos se passaram. Outro bispo, Paládio, foi escolhido para levar o Evangelho à Irlanda - Patrício não seria mais o primeiro missionário na Irlanda.
A missão de Paládio falhou. Durou menos de um ano. Finalmente, Patrício, agora com 60 anos, depois de esperar, orar e pedir a maior parte de sua vida, recebeu permissão do Papa para empreender sua perigosa missão na Irlanda.
O que se seguiu é uma história incrível.
O retorno de Patrício
A Irlanda era uma nação guerreira dividida em distritos tribais. Era rica em virtude dos muitos anos de pilhagens e crescente comércio de escravos. Era um mundo governado por nobres formosos, violentos e guerreiros e por sacerdotes druidas de capuz preto. O paganismo e artes mágicas eram praticadas, e o grande ídolo Crom-Cruach, cercado por 12 divindades menores, erguia-se sobre um campo dedicado ao sacrifício de sangue. Era também uma terra em que poetas perambulavam cantando canções sobre heróis míticos, enquanto chefes festejavam com seus guerreiros em salões iluminados por tochas.
Conforme a tradição e as histórias que nos foram contadas, por volta do ano 432, Patrício e um pequeno grupo desembarcaram na Irlanda e, cantando um hino pela proteção divina, prosseguindo para o interior. Eles logo se viram frente a frente com um grupo de guerreiros armados liderados por dois príncipes irlandeses que tinham ordens para matar os cristãos. No entanto, enquanto Patrício dizia algumas palavras aos soldados, o Espírito Santo entrou em cena, convertendo a maioria, a quem Patrício batizou na hora, incluindo os dois príncipes. Os guerreiros se juntaram a Patrício em sua jornada. (Os príncipes acabaram se tornando sacerdotes e bispos.)
Finalmente, Patrício chegou à corte do rei Logaire em Tara, onde os sacerdotes druidas exibiam sua magia demoníaca, mergulhando teatralmente o salão nas trevas. Em vez de se encolher de medo, Patrício observou em voz alta que esses sacerdotes podiam criar trevas, mas que não podiam dissipá-las - o que não podiam. Ele então passou a usar esse incidente como tema de um sermão, no qual ele comparou Cristo à luz. Muitos dos nobres reunidos se converteram ao cristianismo naquele dia, e Patrício ganhou o respeito e a proteção do rei.
Os druidas alegaram que sua mera presença sugou o poder mágico de suas práticas. Outros guerreiros enviados para matar Patrício foram convertidos por ele. Reis e rainhas tribais se encantaram com sua caridade e destemor. Mesmo aqueles que não se converteram o respeitavam. Por volta de 434, depois de apenas dois anos de pregação na Irlanda, o próprio Patrício usou um báculo para derrubar o ídolo de pedra de Crom-Cruach.
Patrício enfrentou muitas vezes a morte certa de forma destemida. Ele defendeu, pregou e levou Cristo com ele em todos os lugares que viajou. Em seu caminho, deixou convertidos e igrejas em construção. Durante o tempo que Patrício levou para atravessá-la, a Irlanda se converteu do paganismo ao cristianismo. A Irlanda proibiu a escravidão e parou de pilhar seus vizinhos. Nunca antes na história do mundo e nunca desde então uma mudança cultural e religiosa tão dramática e repentina ocorreu sem força de armas, somente através da Palavra de Deus.
Um herói irlandês
Em diversos aspectos, Patrício foi mais irlandês do que os próprios irlandeses. Ele amava as lendas, poesias e canções irlandesas e insistiu para que este patrimônio fosse documentado e mantido. Por sua vez, os irlandeses o amaram e acolheram. Patrício viveu sua vida na Irlanda e morreu ali. Ele deixou para trás um povo cristão, um povo civilizado, e deixou para trás cidades, escolas, seminários e um amor pela aprendizagem perpetuado até os dias de hoje.
Talvez a história que acabei de contar seja tanto mito quanto verdade. Sabemos que provavelmente já havia pequenos grupos de cristãos na Irlanda antes da chegada de Patrício, decorrente em grande medida dos ataques de piratas irlandeses. São Patrício provavelmente nunca expulsou todas as cobras da Irlanda, como dizem as lendas (os biólogos dizem que as cobras nunca foram nativas da Irlanda), mas podemos concordar que Patrício certamente ajudou a expulsar uma serpente mortal daquele verde jardim!
Alguns anos após a morte de Patrício, os bárbaros germânicos saquearam a cidade de Roma, queimaram livros, destruíram edifícios, derreteram artefatos de valor inestimável e arrastaram o mundo ocidental para a Idade das Trevas. A civilização ocidental estava quase perdida, mas os irlandeses, em sua ilha além do alcance dos bárbaros, continuaram sendo um bastião do cristianismo e do saber. Monges irlandeses buscaram, copiaram e protegeram os poucos manuscritos que sobreviveram ao ataque bárbaro no continente. Eles protegeram não apenas os manuscritos cristãos, mas influenciados pelo amor de Patrício pela literatura e pela história, copiaram e mantiveram também a literatura secular e pagã. Graças aos seus esforços, temos a Ilíada de Homero, as preleções de Cícero e milhares de outras maravilhas culturais que poderiam ter desaparecido. Em suma, durante séculos os monges irlandeses preservaram para nós a nossa herança ocidental.
Também foram missionários irlandeses, seguindo os passos de Patrício, que arriscaram suas vidas para levar o Evangelho aos bárbaros que haviam conquistado Roma e se espalhado por toda a Europa - os germânicos. Juntamente com o cristianismo, os monges irlandeses levaram a esses bárbaros os mesmos presentes que Patrício lhes trouxera poucas décadas antes: arte, literatura, aprendizado e um novo estilo de vida.
Portanto, devemos dar um pouco de honra a Patrício, um bretão romanizado que iniciava suas cartas assim : “Eu, Patrício, um pecador...”. Ele foi um homem que confiou em Deus, tornou-se uma poderosa testemunha do Senhor e mudou o mundo. Ele foi realmente um herói.
O nome eterno da Trindade
O texto do hino “I bind unto myself today” [Lutheran Service Book 604], é atribuído a São Patrício. Essa linda oração, tradicionalmente chamada de “Couraça de São Patrício”, foi supostamente composta por Patrício na esperança de sua vitória sobre o paganismo. A tradução da oração do irlandês antigo para o inglês é uma paráfrase de Cecil F. Alexander [1818-95].
O “Apóstolo da Irlanda”, como Patrício é às vezes chamado, também está associado ao trevo, uma planta sagrada para os druidas, que ele utilizou para explicar a Trindade. Pregando ao ar livre, diz-se que Patrício arrancou um trevo da grama que crescia a seus pés e o mostrou aos ouvintes como uma ilustração do Pai, Filho e Espírito Santo. “I bind unto myself today” aborda igualmente o tópico da Santíssima Trindade.
Recebo em mim, agora aqui,
O nome eterno da Trindade,
Ao invocar em oração
A poderosa divindade!
Recebo em mim, agora e sempre,
Ao proclamar a Fé em Jesus,
A Encarnação e o seu Batismo,
A Salvação que vem da Cruz.
A Madrugada pascoal,
O santo dia da Ascensão,
A vinda do Consolador
Me tornam grato o coração.
Recebo em mim o grande amor
Dos exultantes Querubins,
O som das últimas trombetas,
As orações dos Serafins,
Dos patriarcas a grandeza,
Dos confessores a constância,
Das almas virgens a pureza.
Cristo em mim constantemente
Seja o dom da redenção!
Junto a mim, diariamente,
Concedendo proteção!
Tua paz e a eterna bênção
Permaneçam sempre em mim,
Elas sempre recompensam
Os que vão contigo ao fim!
Recebo em mim, agora aqui,
O nome eterno da Trindade,
Ao invocar em oração
A poderosa divindade,
Por quem a natureza é feita:
Ó Trino Deus, a ti o louvor!
- A salvação vem só de Cristo,
Jesus, o Cristo, o Salvador!
[Trad.: Jaci Maraschin - Hinário Episcopal]
Sobre o autor do artigo: John Murphy Ball, físico e escritor, é membro da Ascension Lutheran Church, Huntsville, Alabama (EUA). Artigo publicado originalmente em Lutheran Witness de março de 1999.