Deus é castelo forte – esse é, sem dúvida, o mais conhecido dos hinos de Lutero. Cantado em todo o mundo, sua influência vai muito além do luteranismo. Ele se tornou uma espécie de “hino nacional”, identificador do próprio protestantismo como um todo. Também é entoado em celebrações ecumênicas, e lembro de tê-lo ouvido ser cantado com entusiasmo e até orgulho em uma grande igreja pentecostal do Chile. Aquela comunidade identificava-se com esse hino como expressão de sua própria experiência (de vitória sobre os demônios, dos quais nós já secularizados nada mais queremos saber?!). Bem impressionante e até comovedor, mas com quanta razão o hino exerce esses papéis?
Não sabemos quando Lutero compôs o hino. Com toda a certeza, não foi para expressar qualquer orgulho denominacional ou confessional, tampouco como hino de vitória em qualquer competição religiosa a testar a eficácia da fé. Ele já estava incluído em um hinário de 1529, tendo sido, portanto, composto antes dessa data, mas certamente não nos primórdios da Reforma em 1517, quando da afixação das igualmente famosas 95 Teses ou quando Lutero em 1521 teve de enfrentar a Dieta de Worms e o imperador, como por vezes se supôs. Uma hipótese é que tenha sido composto quando Wittenberg, em 1527, enfrentava a terrível ameaça da peste. Como seja, desconhecemos sua origem. Ele é, contudo, em essência – isso seu texto revela sem margem a dúvidas –, um hino de confiança em Deus e de consolo em toda e qualquer tentação e tribulação, enfermidade, flagelo natural, catástrofes, guerras, angústias mil.
O que nos sustenta nos momentos difíceis de nossa vida? E quando chegarmos ao fim de nossa vida, o que nos sustentará? Essas são as questões de fundo do hino, assim como são no Salmo 46, em que ele está baseado. Trata-se esse de um salmo de confiança e conforto, com uma destemida confissão de confiança em Deus em face de toda e qualquer adversidade. Também o salmo é um hino, possivelmente para uso no culto, com três estrofes, cada qual culminando com a confissão de confiança em Deus, porventura a ser cantada pela comunidade: “O Senhor dos Exércitos está conosco; o Deus de Jacó é o nosso refúgio” (v. 7, 11 e, conforme sugerido por comentaristas, também após o v. 4).
É uma afirmação de confiança em face de eventos que nos ameaçam e atingem a partir da natureza – catástrofes naturais, como deslizamentos e terremotos, são mencionadas (v. 2-3) – e na história dos povos – referidas são as guerras (v. 6 e 9). Em face dessas terríveis ameaças de destruição e morte, sustenta-se a afirmação inicial do salmista: “Deus é o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem presente nas tribulações” (v. 1). Em meio à realidade de sofrimento, Deus protege Jerusalém, a cidade santa, de cujas áridas terras brotarão águas vivas a alegrar o coração. A terceira estrofe relata-nos o maravilhoso livramento que vem de Deus: ele porá fi m às guerras despedaçando todas as suas armas e erigindo seu reino de paz e justiça, do qual podemos fazer parte. Por isso não precisamos temer (v. 2) e nele podemos confiar.
Em sua explanação do Salmo 46, Lutero afirma confiante:
Cantamos o salmo para louvor de Deus, por estar conosco e por preservar maravilhosamente sua palavra e a cristandade contra as portas do inferno, contra o furor de todos os demônios, dos entusiastas, do mundo, da carne, dos pecados, da morte etc. Nosso pequenino poço também há de permanecer fonte viva, enquanto seus pântanos, banhados e águas paradas apodrecerão, exalarão mau cheiro e hão de secar.
Uma esperança ingênua e irreal, à qual Lutero com seu hino deu ampla difusão? Podemos nós assumir como nosso quando na quarta estrofe cantamos:
“Se a morte eu sofrer, se os bens eu perder: que tudo se vá”? (O original alemão é ainda mais chocante ao mencionar “corpo, bens, honra, filhos e mulher”.)
Como no salmo, o hino de Lutero começa com a afirmação contundente:
Deus é castelo forte e bom,
defesa e armamento.
E acrescenta:
Assiste-nos com sua mão,
na dor e no tormento.
Lutero não ignora a dura realidade das tentações, do sofrimento, do mal e da morte. Ela será descrita com toda a crueza ao longo das estrofes do hino. Mas ele conhece uma realidade ainda maior: a graça de Deus, que sempre prevalecerá. Logo após a confissão de fé em Deus, o texto esclarece, ainda na primeira estrofe, contra quem Deus haverá de triunfar, a saber, o próprio Satanás, a quem na terra ninguém poderá resistir, a não ser se refugiando em Deus.
O rei infernal, das trevas, do mal,
com todo poder
e astúcia quer vencer,
igual não há na terra.
A segunda estrofe leva-nos ao âmago da redescoberta do evangelho por Lutero:
A minha força nada faz,
sozinho estou perdido.
Por nossos critérios e medidas, é uma causa perdida. Aqui se reflete a experiência que o próprio Lutero fez: por mais que se esforçasse em alcançar a salvação, nem sua consciência tampouco seu coração obtinham descanso. Não a obtemos por boas obras, sejam elas de benemerência, ações de autodisciplina, ainda nossa espiritualidade e suas orações. O inimigo é por demais poderoso. Será essa de fato uma causa perdida?
Um homem a vitória traz,
por Deus foi escolhido.
Para que não paire dúvida alguma:
Quem trouxe essa luz?
Foi Cristo Jesus,
o eterno Senhor,
outro não tem vigor;
triunfará na luta.
A salvação nos vem tão somente de Deus. Com essa certeza, podemos encarar a realidade em toda a sua aterradora dimensão, o que ocorre na terceira estrofe. Se todo o mundo estivesse tomado por “mil demônios”, querendo devorar-nos, já nada poderia nos atemorizar. Satanás não tem mais nenhum poder, uma única palavra de Deus há de destruí-lo. Conforme o original, basta para Jesus Cristo uma “palavrinha” só.
Se inúmeros demônios vêm, querendo exterminar-nos,
Sem medo estamos, pois não têm poder de superar-nos.
Pois o rei do mal,
de força infernal,
não dominará;
já condenado está
por uma só palavra.
A supremacia de Deus não pode ser expressa de maneira mais contundente. Todos os nossos esforços são em vão, mas para Deus uma “palavrinha” basta. Se uma única palavrinha lhe é suficiente, por que haveríamos nós de temer em dor e aflição quando dele recebemos tão abundantes promessas de salvação?
Essa conclusão é tirada na quarta estrofe:
O Verbo eterno vencerá
as hostes da maldade.
As armas, o Senhor nos dá:
Espírito, Verdade.
O original alemão é mais claramente centrado na ação de Deus: “Ele age entre nós com seu Espírito e dons”. Isto é: Deus abre-nos novas perspectivas e nos permite prosseguir nossa via, agora com seu espírito e com suas dádivas a nós. No horizonte final, não importa o que nos acontecer; mesmo se perdermos tudo quanto, depois de Deus, nos é mais importante, estaremos em seu reino de esperança, justiça e paz.
Se a morte eu sofrer,
se os bens eu perder:
que tudo se vá!
Jesus conosco está,
seu Reino é nossa herança.
“Que tudo se vá!”. “Corpo, bens, honra, filhos e mulher”, como consta no original? Não se trata aqui de desprezo por esses valores tão substanciais para nossa vida e tão íntimos em nossas relações, com os quais Lutero, em vida, também se alegrou? Mas nos demos conta: nada disso, por mais precioso que seja, nos dá segurança para a vida. Mais cedo ou mais tarde, seja em forma dramática, seja tranquila e natural, nos defrontaremos com o “último inimigo” (1Co 15.20), a saber, a morte. E todas as pessoas, sem exceção, sucumbirão diante dela. Será o fim de tudo? Definitivamente não. “O último inimigo a ser destruído é a morte” (v. 26). Também esse inimigo terá sido derrotado por Jesus. “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão? [...] Graças a Deus, que nos dá a vitória por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo” (v. 55 e 57).
No início do hino, “Deus é castelo forte e bom”; no final: “Seu Reino é nossa herança”. Fica claro: nada de humano pode, em última instância, nos assegurar diante das ameaças que nos rodeiam. Podemos admirar portentosos castelos, mas os fabricados por mãos humanas não nos darão a segurança última que procuramos. Só Deus, por intermédio de Jesus Cristo, pode no-la dar. “Deus é castelo forte e bom”, e não há sobre a face da Terra nenhum outro castelo que seja, em última instância, firme e bom. Apenas nosso Deus é. “Isso é certissimamente verdade”, diz Lutero repetidamente no Catecismo. Por isso “Deus [e somente Deus] é castelo forte”.
Ainda uma palavra: nos dias em que preparei este texto originalmente – janeiro de 2010 –, corriam na tela de televisão, quase incessantemente, imagens dramáticas dos catastróficos efeitos do terremoto no Haiti. Destruição por toda a parte, de residências até a catedral, o palácio presidencial e a sede da missão da ONU. Um terço da população do país fora atingido. As estimativas de mortes cresciam a cada momento, também entre agentes de paz e desenvolvimento que estavam atuando no país. Faltavam moradia, água e comida. A multidão corria pelas ruas a esmo, sem saber para onde ir ou onde buscar alívio. Mais de meio milhão de migrantes internos, forçados pelas circunstâncias. Órfãos sem conta. Mas, em meio à tragédia, vinham também imagens de solidariedade no resgate a sobreviventes soterrados, no cuidado médico em condições precaríssimas, na distribuição dos parcos alimentos disponíveis, no nascimento saudável de novas crianças dadas à luz por mães feridas – um raio de futuro em meio à tragédia presente. E também nos chegaram imagens de um grupo de pessoas na rua, entre escombros, em oração e entoando hinos. Deus é castelo forte teria estado entre eles? Bem poderia ter estado.
Resumindo: com boa razão, o hino Deus é castelo forte recebeu o lugar de destaque na espiritualidade das igrejas da Reforma, com alcance ecumênico até. Mas não porque devesse ser celebrado como um hino de vitória do protestantismo, mas por expressar bem a centralidade da obra de salvação de Deus em Cristo em nosso favor. Por nos consolar na tribulação. Quando nos reconhecemos impotentes, Deus está ao nosso lado. Nele podemos confiar, sempre, em todas as circunstâncias, as mais dramáticas que sejam e, por fim, em face da morte. “Seu Reino é nossa herança.”
Walter Altmann
Trecho de auxílio homilético para o Dia da Reforma (31/10/2013) em Proclamar Libertação - Volume: XXXVII
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